terça-feira, 23 de setembro de 2014

Amor, solidariedade e saudade

A primeira vez que estive na casa de Abelardo, eu não tinha noção de que eu estava diante de uma lenda das artes plásticas. Eu e minhas amigas pouco conhecíamos desse universo, mas aceitamos a sugestão da nossa professora de que ele fosse o tema do nosso projeto experimental para conclusão do curso de jornalismo. Queríamos um tema que fosse ao mesmo tempo interessante e pouco explorado, já que precisávamos passar na seleção para fazermos nosso documentário (uma espécie de "peneirão", já que a faculdade dispunha de equipamentos e laboratórios limitados). Com o tema definido, precisávamos elaborar um pré-projeto e, para isso, lá fomos nós bater na casa de Abelardo, tentar conhecer um pouco da sua história e, claro, pedir sua autorização para produzirmos o vídeo.
Abelardo nos recebeu com um grande sorriso e gostou da ideia do vídeo. Foi logo contando, nesse primeiro encontro, toda a sua trajetória. Embora preservasse a humildade, ele sabia o exato valor de seu trabalho e de sua história, não apenas nas artes, mas também na política. Com as informações, ficou fácil convencer os professores e conseguir autorização para realizarmos o trabalho.
A partir de então, foram meses de intensa convivência. Abelardo e sua esposa, Margarida da Hora, nos deixavam completamente à vontade. Ficávamos horas e horas perguntando, olhando as fotos, as obras, as recordações da família. Só íamos embora na hora da aula, muitas vezes atrasadas! Ainda bem que eles moravam pertinho da Unicap, logo ali na Rua do Sossego. E era mesmo um lar sossegado, tranquilo, aconchegante. O engraçado é que, de vez em quando, tínhamos que explicar "o que era mesmo que nós estávamos fazendo". 
Aos poucos, nós, "as meninas da Católica", como eles nos chamavam, íamos conhecendo a história de Abelardo e nos encantando cada dia mais. Seu pioneirismo nas artes e na política. Suas brincadeiras e travessuras. E também sua força, sua compaixão, sua solidariedade. Conhecido por suas artes que enaltecem a beleza das mulheres, Abelardo fez muito mais. Foi fundador do Movimento de Cultura Popular, que levava cultura a quem não tinha acesso. Criou, também, o Ateliê Coletivo, formando uma geração de artistas e contribuindo muito para que Pernambuco seja hoje este estado tão orgulhoso de sua arte. Denunciou a fome e o sofrimento do povo de sua terra. Um de seus trabalhos mais famosos é a coleção de desenhos "Meninos do Recife", que retrata a vida e o sofrimento de meninos que viviam nas ruas e nas praças da cidade. Abelardo vivia repetindo que a sua obra era feita de amor e solidariedade.
Foram meses muito intensos, cansativos e prazerosos. Abelardo era não apenas a personagem do nosso documentário, mas atrevia-se a sugerir entrevistados e histórias que não podiam ficar de fora. Mais de que isso, sugeria ângulos de câmera. A gente, claro, fazia de tudo para respeitar a vontade do mestre.
No dia da apresentação do nosso projeto, Abelardo fez questão de ir assistir. E, muito mais de que a nota dez conferida pela banca, eu e minhas amigas vibramos mesmo foi com a aprovação do vídeo por ele. 
Desse periodo, guardo muitas lembranças, além de um desenho que Abelardo fez em uma dessas visitas. Mandei emoldurar e trouxe comigo para Brasília. Foi o primeiro quadro a enfeitar a parede da minha casa. Hoje tenho muitos, mas nenhum é tão amado e traz tantas recordações. 
Ah, não poderia jamais deixar de destacar o papel importante de Margarida em toda a trajetória de Abelardo, algo que ele mesmo fazia questão de ressaltar. Há alguns anos, recebi com tristeza a notícia do falecimento de Margarida. Lembrei com carinho de todos aqueles dias e de como ela não guardava os nossos nomes. Vivia nos perguntando e, sempre que respondíamos, ela dizia: "ah, são duas Renatas e uma Tatiana, igual a minha neta, não esqueço mais!" Era um doce, super delicada. Era companheira de Abelardo, ficava na retaguarda e lhe dava condições para produzir e brilhar.
Hoje, dez anos após a produção do nosso vídeo, morreu o nosso querido Abelardo. Foi reencontrar a sua companheira com nome de flor. Imagino os dois se abraçando ao som de sua canção preferida, que eu não conhecia, mas de tanto vê-los cantarolar, aprendi e nunca esqueci: "Vi, numa vitrine de cristal, sobre um soberbo pedestal, uma boneca encantadora... No bazar das ilusões, no reino das fascinações, num sonho multicor, todo de amor..."
Na verdade, acredito que o querido casal da Hora mudou-se. Deixou a Rua do Sossego e foi morar em outra, também muito famosa no Recife: a Rua da Saudade - que, a partir de agora, é também a Rua do Amor e da Solidariedade.






Um comentário:

Ana Lourdes disse...

Além da bela e justa homenagem ao artista e ao cidadão Abelardo da Hora, um grande orgulho de ter uma escritora, minha, tão talentosa no texto de tanta qualidade, mas antes sensível, terna e grata. Beijo, filhota.